Na dúvida, o mínimo é o orgasmo
Ao olhar o horizonte de luzes, pela janela, molhada da chuva,
vieram-me duas palavras ao pensamento: dúvida e responsabilidade. E não é
a dúvida, palavra de seis silabas, não é o acento no u, não é a
composição da palavra, nem sequer a posição dela numa frase. É a palavra
de seis sílabas, com acento no u, com o d em primeiro lugar, o u com o
tal acento, seguido do v e logo atrás o i. Segue-se de novo o d, seguido
do a. Não! É mais do que isso. E mesmo que a palavra composta se
inclua, com vontade própria, numa frase, ela ainda é mais do que isso.
Ela é a força e a fraqueza em cada um de nós. Ela é vida, ela é
desequilíbrio no equilíbrio, é um vôo rasante, um milésimo de segundo,
um triz. E se tiver a sorte ou o azar de ser incluída numa frase, e mais
do que incluída numa frase qualquer, estabelecer nessa frase uma
relação com a palavra responsabilidade? Seja qual for o cariz. Vamos
imaginar, cariz sexual. Gostamos sempre de falar de sexo. Vamos imaginar
a dita relação na frase: “na dúvida há que ter responsabilidade e usar o
preservativo”. Outra possíbilidade, uma coisa mais de cariz político,
infelizmente é do que mais ouvimos falar nos últimos tempos e é do que
menos vemos fazer também: Vamos imaginar esta também: “ A
responsabilidade de um primeiro-ministro é assegurar e manter todas as
dúvidas dos portugueses sobre todas as politicas, e constantemente. Nós
adoramos!”. Noutro exemplo, virado mais para a relação doméstica:
“Querida tenho uma dúvida, o esparguete põe-se depois d´água estar a
ferver ou antes?”. Outra situação, por exemplo, seria utilizá-la para
descrever um caso amoroso triangular , tão típico, tão antigo. Já ouvi
histórias com mais de sessenta e cinco anos. E apercebermo-nos de que
não é nada novo, dá-nos alguma sensação de conforto. E então a frase
seria: “Amor da minha vida, estou com uma dúvida, não sei se te amo. E a
minha responsabilidade é dizer-te para não ter que me desenvencilhar
sozinho”. Ora, se leram com atenção, pelo menos alguma, pouca ou muita
(também o que são estas palavras?!), deu para perceber a grande
confusão. Mas imaginem que é exactamente esta a confusão em que me
encontro. É mais do que a palavra, é mais do que as seis silabas juntas,
é mais do que aquela palavra específica naquele contexto específico. É
mais do que a relação entre as palavras. É mais do que a entoação que
damos, se bem que já ajuda. Há quem defenda a expressão corporal, há
quem a ignore, há quem se esqueça dela nos momentos mais precisos, há
quem nem se dê conta que ela faz parte de si. Eu sou daquelas que sente
tudo por ela. Adoro a expressão corporal e adoro conhecer o outro assim.
Pelo que sente, pelo que expressa, pelo que mostra sem confidências,
mesmo que não queira. Era capaz de me apaixonar pela expressão corporal.
E já me apaixonei assim. Tudo começou com uma fisionomia, um jeito
específico dado numa altura específica, um fechar inesperado dos olhos e
um rasgo sorrateiro nos lábios. Hum, e apaixonei-me apenas por isso.
Durou um mês. Nada mau! E era só aquela expressão? A dúvida era só a
palavra? Não me parece! Parece mais do que isso. Não, é muito mais do
que isso. Mas mesmo mais! É a dúvida sentida. É o que cada um de nós
sente, bem lá dentro, quando a lê, a ouve ou a diz. Que tipo de relação
essa pessoa estabeleceu com essa palavra? O que vê nela, colocada em
cada uma das milhares possibilidades de frases? Em alguma delas, deu-lhe
prazer? Basta uma, e é a esperança que se mantém. Como os jogos da
sorte. O vício é esperança desatinada, seja no que for. E, não tenho a
certeza de ter tido a certeza sobre todas as certezas mas hoje, olho
para essa incerteza de alguma vez ter tido a certeza sobre todas as
certezas e... ela deixa-me feliz e ciente de que aquelas duas palavras,
de que falei no início do texto, e sobre as quais debrucei este nosso
assunto, não são meras palavras, mas palavras das quais muitas vezes
fugimos, às vezes ignoramos, outras vezes delas nos queremos esquecer. E
durante imenso tempo podemos até nem nos lembrar. Podemos guardá-las no
baú. Mas basta as sentirmos, até podem estar sozinhas. Nem precisam já
de estar numa frase. Basta senti-las uma vez. E quando as sentirmos,
seremos capazes de não as largar nunca mais. Falar da dúvida, por mais
pequena que possa ser considerada, por mim ou por outro, torna-se um
vício. E é um vício maravilhoso! De repente tudo são dúvidas! As
palavras que nós achávamos tão banais, corriqueiras, tornam-se dúvidas a
tempo inteiro. As que nós achávamos curiosas deixam de ser; as que nós
não conhecíamos passamos a conhecer. Enfim, tudo são dúvidas que
levantam mais dúvidas. Porque vamos voltar a sentir. E aí, tudo muda
novamente. Porque tudo se altera, tudo se transforma, como já dizia o
outro senhor. E assim, a dúvida volta a ganhar outro peso, outra
entoação, outro sentir, outra expressão corporal. E lá volta a
responsabilidade. Maldita palavra que vem colocar ainda mais dúvidas.
Mas e vem como? Como é que a responsabilidade foi sentida aí dentro?
Depende de tanta coisa... Mas isso é caso para outra história. Aqui,
nesta história, neste momento, neste aqui e agora, a dúvida era o tema
principal, ainda que tivesse dúvidas no início do nosso diálogo e por
isso tenha convidado a palavra responsabilidade para a conversa. De
qualquer forma, como estava a dizer aqui, nesta história, quero apenas
felicitar a palavra dúvida. Agradecer-lhe também. Principalmente
agradecer-lhe, porque foi apartir do momento em que estabeleci uma
relação com ela (ainda não sei bem de que foro) que tomei a liberdade de
a sentir e de finalmente a viver. Posso garantir, e talvez tenha alguma
dúvida, mas foi das coisas que mais prazer me deu. Obrigada dúvida
porque acabaste de me dar o melhor orgasmo do mundo. Espero que vos
tenha feito rir, pelo menos rir, mas se vos fez chorar, posso dizer que
eu também tinha dúvidas e hoje ainda tenho, mas agora já não choro, rio.
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